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domingo, 23 de janeiro de 2011

SEMANA SANTA

Semana Santa

Penso agora numa Semana Santa de Ouro Preto, recordo a melancolia das igrejas, na cidade contrita. Posso ver a multidão comprimir-se para assistir à Procissão do Encontro: no alto dos andores, o rosto da Virgem é uma pálida flor, e a cabeça de Cristo, inclinada, balança os cachos do cabelo ao sabor da marcha, com um ar dolente de quem vai por um caminho inevitável. O pregador começa a falar explicando aquela passagem do Evangelho, exorta os fiéis à contemplação daquela cena, cuja significação mais profunda procura traduzir. Mas o povo já está todo muito comovido: as velhinhas choram, as crianças fazem um beicinho medroso e triste e as moças ficam pensativas, porque _ embora em plano divino _ os fatos se reduzem à desgraça cotidiana, que elas conhecem bem, de um Filho que vai morrer, e cuja Mãe não o pode salvar, e que ali se despedem, uma com o peito atravessado de punhais, outro com a sua própria cruz às costas. O povo é bom, o povo quereria que todas as Mães e todos os Filhos fossem felizes, e se pudessem socorrer, e não morressem nunca, e principalmente não morressem dessa maneira, pregados a cruzes transportadas nos próprios ombros.

O povo é bom, e sabe que o Cristo ressuscitará, o povo confia na Ressurreição, mas sua tristeza não é menor, por isso, e há lágrimas sinceras nos rostos simples que levantam o perfil para os andores parados na encruzilhada.

À descida da Cruz, novamente a aflição dos fiéis, com o rosto banhado em lágrimas. Tudo foi há muito tempo, em termos sobre-humanos, eles o sabem: mas como se pode ver Nossa Senhora com seu terno Filho, assim despregado e em chagas, a resvalar para os seus braços consternados? Ah! o povo é bom e não pode deixar de comover-se com a Santa Tragédia, que, em termos humildes, é a sua tragédia de cada dia, com os braços infelizes estendidos para filhos martirizados.

Depois, à luz dos círios, na interminável procissão que sobe e desce pelas ladeiras, o povo, de olhos lutuosos, experimenta em seu coração aquele acontecimento duplamente emocionante, conhecendo-o também no plano terrenal, na angústia e no mistério da morte, a cada instante observada e sofrida. Pelas ruas, o povo bom acompanha o enterro do Justo, agüentando com fortaleza o cansaço do íngreme caminho; e pelas janelas, como pelas ruas, o povo bom participa daquela amargura, morre em seu coração daquela morte, aceita a sua condição humana, naquele lance final, depois de se ter preparado para ele através das provações anteriores, graves e acerbas.

Tudo isso enquanto as matracas fazem um acompanhamento surdo, tenebroso, ameaçador, e os cabelos de Madalena exibem sua amorosa beleza, e a voz que canta o O vos Omnes se eleva, pungente, na noite, fazendo chorar o povo bom, que tem suas dores tão grandes, tão grandes, mas decerto menores do que a daquela que pergunta: “Conheceis uma dor igual à minha?” _ e expõe a Santa Verônica.

Oh, a dor dos pais pelos filhos! Abraão vai ao cortejo, querendo descarregar a espada sobre Isaac, para provar a Deus sua devoção. Mas o Anjo compadecido puxa-lhe a espada para cima. Não, não é preciso que ele sacrifique o menino que também vai carregando às costas o pequeno feixe de lenha do seu sacrifício: “Abraão, Abraão, não estendas a tua mão sobre o menino, e não lhe faças mal algum...” Deus é bom, o povo é bom, uma onda de bondade comove a noite inteira, das estrelas do céu até o fundo dos córregos...

Depois, é aquele amanhecer festivo de coisas claras e douradas, de cânticos felizes, de sinos, com todas as lágrimas enxutas, porque um dia todos os Filhos serão felizes, nem Isaac será queimado no alto do monte nem Jesus crucificado; um dia todas as Mães serão definitivamente jubilosas, e as velhinhas agradecem a Deus _ há dois mil anos as velhinhas agradecem a Deus tanta bondade _ e as moças sentem o coração dilatado de esperanças, e os anjinhos de procissão, que agora mal podem andar com suas grandes asas de penas brancas, os anjinhos que um dia vão ser crescidos, adultos e vão saber destes difíceis problemas de viver, de serem filhos e de serem pais, esses anjinhos, de pés cansados e carinhas alegres, comem os seus confeitos de Páscoa, ainda de asas e túnica, à beira das calçadas, no degrau das portas, em alguma ponta de muro...

O povo bom sofre uma vez por ano, intensamente, seu compromisso de ser bom, de ser melhor, cada dia mais, para sempre. O destino do homem é ser bom. Sua felicidade está em consegui-lo, mesmo _ ou principalmente _ sofrendo.

(Cecília Meirelles)