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domingo, 30 de janeiro de 2011

TEMAS ETERNOS

Há sempre um amor procurando seu nome
Na solidão do livro dos tempos.

Há sempre uma veste nupcial
Pendendo da guilhotina da noite.

Há sempre restos do Minotauro
A escurecer os campos tranquilos.

Há sempre um olhar espiando o horizonte,
um olhar que não foi visto.

(Murilo Mendes)

BEIRA-MAR

Eu consultei o mito,
Interroguei o céu que marcha:

Debato-me na gaiola do mundo
Até que me envolva o futuro.

Luzes ambíguas dançam,
Homens deslocam o busto
E a esfinge prepara lentamente
O avesso da sua responsa.

Onda que vais, onda que vens,
Dá-me notícias de mim mesmo.

(Murilo Mendes)

domingo, 23 de janeiro de 2011

BONECA DE PANO

BONECA DE PANO

Boneca de pano dos olhos de conta,
vestido de chita,
cabelo de fita,
cheinha de lã.
De dia, de noite, os olhos abertos,
olhando os bonecos que sabem marchar,
calungas de mola que sabem pular.
Boneca de pano que cai:
não se quebra, que custa um tostão.
Boneca de pano das meninas infelizes que
são guias de aleijados, que apanham pontas
de cigarro, que mendigam nas esquinas, coitadas!
Boneca de pano de rosto parado como essas meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã. -
Os olhos de conta caíram. Ceguinha
rolou na sarjeta. O homem do lixo a levou,
coberta de lama, nuinha,
como quis Nosso Senhor.

(Jorge de Lima)

PLANTAS

PLANTAS

Não apeiba simbalanea,

o teu nome, conterrânea, é Embira Branca,
Pau-de-jangada, simplesmente,
com que o homem das praias
vence as ondas
e ferra o tubarão,

o mero.
a arraia.

Copaúba, dendê, coco pindoba,
pau-d'arco cor de oiro,

camará cor de luar,
sapucaia cor-de-rosa.
canafístula cor de feridas;
já não há
mais pau-brasil

mas há plantas que dão
pão,
sal,
azeite.
água.
pano,

remédios,
carrapetas,
taramelas,
e há a cana que dá tudo,
porque dá ao homem triste dessas terras
a alegria cor de brasa da embriaguez
e o esquecimento cor de cinza que vem dela.

(Jorge de Lima)

POEMINHAS

Cuidado (Quem Vê Cara ...)


O medo tem olho humano
O ódio voz de paquera
O terror cara de gente
O amor fúria de fera.


Poeminha de Homenagem ao
Hiperavangardismo



Tão pra frente, tão pra frente
Que nunca fez como a gente
Que sempre chega atrasado.
Mas uma vez, desesperado,
Viu que tinha exagerado,
No passar pra trás, no tempo,
Mesmo os mais avangardantes;
Pois saiu de casa um dia
E voltou um dia antes.

Poeminha sem Nexo
Queixa



Liderar não é nada duro;
As perguntas são todas no presente,
As respostas são todas no futuro.


Poeminha sem Nexo
Approach


Uísque você toma
De qualquer jeito;
Cachaça tem que ter
Muito respeito.

POEMINHAS

Poisea

Clara cloro puru
More Mara Taipé
Cloro Clara Guru
Lento Coméquié.
Canta Tutu Cantiga
Riga Santiga Taro
Raro Manero Puro
Tanta Canta Monaro.


Poeminha (Bem) Moderato


Hora de beber; parcimônia,
Hora de falar; discrição,
Hora de comer; continência,
Hora de amar - (muita) atenção.


Poeminha à Glória Televisiva


Não me contem!
Ele era tão famoso
Antes de ontem!


Certidão
Poeminha à Certeza Total



Eu sei, rapaz, confesso
Que estava errado ontem
E você, certo.
Mas você não estava certo
De que eu estava errado.
Eu, desde o início,
Admiti a hipótese
De você estar certo.
Politicamente eu agia errado.
Mas estava aberto no meu erro.
Você, fechado, em defesa,
Amedrontado na sua certeza.
Errado, espiritualmente
eu estava certo
E você, certo, se apoiava

Numa atitude humana viciada.
Tranqüilo, aqui estou eu, errado.
Certo, afirmado,
Certamente você está muito magoado.

(Millor Fernandes)

POEMINHAS

Poeminha

(Contra o turismo organizado, férias
programadas e outras indústrias)

Que é que posso fazer,
Se o trabalho é meu lazer?


Poeminha com Estalo de Vieira


Entendi:
Sofisticação
Contestação
Liberação
É só sentar no chão.


Poeminha em Busca de Identidade

Quando estamos reunidos
No high society
Procuramos distinguir
os bem-nascidos
dos mal-nascidos.
Mas em outro mundo
mais mal nutrido
só indagamos:
terão nascido?

(Millor Fernandes)

APROXIMAÇÃO DA TEMPESTADE

APROXIMAÇÃO DA TEMPESTADE

Saio pelos campos de vidro
Respirando o som dos sinos.

Topo miragens augustas
Do tempo que se prepara.
A mão do pobre me olhou,
A nuvem fecha as espáduas.

Nascem raízes do meu corpo.

Um Ente nervoso desenrola
O hieroglifo das idades:

Quando lhe perguntei meu nome
Ouvi um riso no céu.

(Murilo Mendes)

VISÃO LÚCIDA

VISÃO LÚCIDA

- Debruçado à varanda
Que enxergas no horizonte?

- Órfãos. loucos. aleijados
Em carros tintos de sangue,
Cegos guiados por cegos.

- Que enxergas mais no horizonte?

- Vejo a morte graciosa.

- Vês a morte graciosa?

- Sim. ela inda é muito moça.
Prepara o vestido novo
Para receber a guerra
Que cresce no bojo desta.

(Murilo Mendes)

ANAMORFOSE

ANAMORFOSE

Procurei-te Eleonora
Como um simples humano procura a árvore.
Mas que espanto e surpresa!
Tive de cobrir o rosto com a cinza do arranha-céu
E interrogar o hieroglifo da esfinge.

Magnólia cálida
Noite da aurora
Eleonora
Assim fiquei à tua espera
Em pé no monumento de areia
- Meu próprio coração absurdo.
O vento atirava largos véus
Nas constelações de perfil.

Surgiste
Ai de mim!
Dama da Inquisição
Envolta numa camisola de nuvens
Anunciando meu exílio
Antes que os cães da tua febre
Devorem meu corpo
Ao primeiro aceno da manhã.

(Murilo Mendes)

RESUMO

RESUMO

Atrás da boca
Uma cortina de fel.
Nem às vezes são remédio
As constelações do teu corpo.

Desenhar o céu diurno.

Quem me apresentará o cálice
No qual se bebe a manhã?

Rasgou-se o manto de púrpura.
Resta o diálogo com a sombra,
O encontro do muro espesso
De onde surge um deus amargo
Reclamando o que não fiz.

(Murilo Mendes)

XANGÔ

Xangô

Num sujo mocambo dos "Quatro Recantos".
quibundos, cafuzos, cabindas, mazombos
mandingam xangô.
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Dois feios calungas - oxalá e taió rodeados de contas.
no centro o Oxum!
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Caboclos. mulatos, negrinhas membrudas
aos tombos gemendo, cantando. rodando,
mexendo os quadris e as mamas bojudas
retumbam o tantã ...
Oxum! Oxalá. O! Ê!
Sinhô e Sinhá num mêis ou dois mêis se
há de casá
Mano e mana! Credo manço!
No centro o Oxum!
Dois feios bonecos na rede bem bamba!
loiô e laiá!
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor;
todas duas
todas três
todas seis
e todas nove!
Santo Onofre
São Gurdim
São Pagão
Anjo Custódio
Monserrate
Amém
Oxum!
No sujo mocambo a dança batuca.
Recende o fartum dos sangues cabindas.
Batendo com os pés, tremendo com as ancas,
volteia sem roupas
com o santo Oxum-Níla
a preta mais nova.
Oxum! O!
Redobram o tantã, incensam maconha!
Oxalá sorri...
E a preta mais nova com as pernas tremendo,
no crânio um zunzum,
BO ventre um chamego
de cabra no cio ... Ê! Ê!
Redobram o tantã.
Ogum taiá-iê!
Me pega ioiô!
o santo Ogum-Chila redobra o feitiço.
Oxalá sorri.
Os olhos da preta parecem dois rombos
na pele retinta.
Mas chega o momento: Xangô sai do nicho
de contas redondas,
se encarna no corpo dos negros fetiches ...
A negra mais nova se espoja no chão.
Acode o rnocambo,
Xangô tinha entrado no ventre bojudo,
subira pro crânio da negra mais nova.
Num canto da sala
Oxalá sorri.
Meu São Mangangá
Caculo
Pitomba
Gambâ-marundu
Gurdim
Santo Onofre
Custódio
Ogum.
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor
todas duas
todas três
todas nove
o mal seja nela
São Marcos, São Mancos
com o signo de Salomão
com Ogum Chila na mão
com três cruzes no surrão
S. Cosme! S. Damiãol
Credo
Oxum-Nila
Amen.

(Jorge de Lima)

ORFEU

ORFEU

O sino volta de longe,
Desperta a ronda infantil.
Os homens-enigmas passam,
Não reconhecem ninguém.
O mundo muitas vezes
É tão pouco sobrenatural.

Penso nas amadas vivas e mortas,
Penso em suas filhas
Que são um pouco minhas filhas.

Ajudo a construir
A Poesia futura,
Mesmo apesar dos fuzis.

Os planetas vão se aproximando,
Alguém volta para o céu:
O universo é um só.

(Murilo Mendes)

ABISMO VOADOR

ABISMO VOADOR

Cordélia semeia pés de nuvem,
Colhe miosótis, gramofones.

Que calma no mapa-múndi,
Ciclone nos teus braços.

o espartilho, o diadema,
Voltam à moda entre as árvores.

Estamos vestidos de alfabeto,
Não sabemos nosso nome.

Cavalos brancos vermelhos
Mastigam o mundo:
Olhai a sombra da terra,
Uma enorme guilhotina.

Galopa fantasma,
Vida contra a vida.

(Murilo Mendes)

SAUDADE

SAUDADE

Saudade cheia de graça,
alegria em dor difusa,
doença da minha raça,
pranto que a guitarra lusa
em seu exílio verteu. . .

Ai quem sentir-te não há-de
se foi dentro da saudade
que a minha pátria nasceu.

(MENOTTI DEL PICCHIA In Chuva de Pedra)

A NAMORADA

A NAMORADA

Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-rnail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da
goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.

Manoel de Barros

OBRAR

Obrar

Naquele outono, de tarde, ao pé de roseira de minha avó, eu obrei.
Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio
nas casas.
Eu só obrei no pé da roseira da minha avó.
Mas ela não ralhou nem.
Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco orgânico.
E que as obras trazem força e beleza às flores.
Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta.
Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates.
A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os
ensinos do pai.
Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
desprezíveis
E nem os seres desprezados.

(Manuel de Barros)

PARREDE!

Parrede!

Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
- Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.

O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
- Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.

O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.

Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meus Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão..
- Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.

Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes.

(Manuel de Barros)

FRASEADOR

Fraseador

Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze.
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro.
Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de
fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador.
Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu:
Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.

(Manoel de Barros)

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES

Pra não dizer que não falei das flores

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam antigas lições
De morrer pela pátria e viver sem razão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

(Geraldo Vandré)

SEMANA SANTA

Semana Santa

Penso agora numa Semana Santa de Ouro Preto, recordo a melancolia das igrejas, na cidade contrita. Posso ver a multidão comprimir-se para assistir à Procissão do Encontro: no alto dos andores, o rosto da Virgem é uma pálida flor, e a cabeça de Cristo, inclinada, balança os cachos do cabelo ao sabor da marcha, com um ar dolente de quem vai por um caminho inevitável. O pregador começa a falar explicando aquela passagem do Evangelho, exorta os fiéis à contemplação daquela cena, cuja significação mais profunda procura traduzir. Mas o povo já está todo muito comovido: as velhinhas choram, as crianças fazem um beicinho medroso e triste e as moças ficam pensativas, porque _ embora em plano divino _ os fatos se reduzem à desgraça cotidiana, que elas conhecem bem, de um Filho que vai morrer, e cuja Mãe não o pode salvar, e que ali se despedem, uma com o peito atravessado de punhais, outro com a sua própria cruz às costas. O povo é bom, o povo quereria que todas as Mães e todos os Filhos fossem felizes, e se pudessem socorrer, e não morressem nunca, e principalmente não morressem dessa maneira, pregados a cruzes transportadas nos próprios ombros.

O povo é bom, e sabe que o Cristo ressuscitará, o povo confia na Ressurreição, mas sua tristeza não é menor, por isso, e há lágrimas sinceras nos rostos simples que levantam o perfil para os andores parados na encruzilhada.

À descida da Cruz, novamente a aflição dos fiéis, com o rosto banhado em lágrimas. Tudo foi há muito tempo, em termos sobre-humanos, eles o sabem: mas como se pode ver Nossa Senhora com seu terno Filho, assim despregado e em chagas, a resvalar para os seus braços consternados? Ah! o povo é bom e não pode deixar de comover-se com a Santa Tragédia, que, em termos humildes, é a sua tragédia de cada dia, com os braços infelizes estendidos para filhos martirizados.

Depois, à luz dos círios, na interminável procissão que sobe e desce pelas ladeiras, o povo, de olhos lutuosos, experimenta em seu coração aquele acontecimento duplamente emocionante, conhecendo-o também no plano terrenal, na angústia e no mistério da morte, a cada instante observada e sofrida. Pelas ruas, o povo bom acompanha o enterro do Justo, agüentando com fortaleza o cansaço do íngreme caminho; e pelas janelas, como pelas ruas, o povo bom participa daquela amargura, morre em seu coração daquela morte, aceita a sua condição humana, naquele lance final, depois de se ter preparado para ele através das provações anteriores, graves e acerbas.

Tudo isso enquanto as matracas fazem um acompanhamento surdo, tenebroso, ameaçador, e os cabelos de Madalena exibem sua amorosa beleza, e a voz que canta o O vos Omnes se eleva, pungente, na noite, fazendo chorar o povo bom, que tem suas dores tão grandes, tão grandes, mas decerto menores do que a daquela que pergunta: “Conheceis uma dor igual à minha?” _ e expõe a Santa Verônica.

Oh, a dor dos pais pelos filhos! Abraão vai ao cortejo, querendo descarregar a espada sobre Isaac, para provar a Deus sua devoção. Mas o Anjo compadecido puxa-lhe a espada para cima. Não, não é preciso que ele sacrifique o menino que também vai carregando às costas o pequeno feixe de lenha do seu sacrifício: “Abraão, Abraão, não estendas a tua mão sobre o menino, e não lhe faças mal algum...” Deus é bom, o povo é bom, uma onda de bondade comove a noite inteira, das estrelas do céu até o fundo dos córregos...

Depois, é aquele amanhecer festivo de coisas claras e douradas, de cânticos felizes, de sinos, com todas as lágrimas enxutas, porque um dia todos os Filhos serão felizes, nem Isaac será queimado no alto do monte nem Jesus crucificado; um dia todas as Mães serão definitivamente jubilosas, e as velhinhas agradecem a Deus _ há dois mil anos as velhinhas agradecem a Deus tanta bondade _ e as moças sentem o coração dilatado de esperanças, e os anjinhos de procissão, que agora mal podem andar com suas grandes asas de penas brancas, os anjinhos que um dia vão ser crescidos, adultos e vão saber destes difíceis problemas de viver, de serem filhos e de serem pais, esses anjinhos, de pés cansados e carinhas alegres, comem os seus confeitos de Páscoa, ainda de asas e túnica, à beira das calçadas, no degrau das portas, em alguma ponta de muro...

O povo bom sofre uma vez por ano, intensamente, seu compromisso de ser bom, de ser melhor, cada dia mais, para sempre. O destino do homem é ser bom. Sua felicidade está em consegui-lo, mesmo _ ou principalmente _ sofrendo.

(Cecília Meirelles)

POEMA DE ALBERTO CAEIRO

O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?

E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: _
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.

(Poemas de Alberto Caeiro, ed. cit., p.61)

ANIVERSÁRIO

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui _ ai , meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
(...)

(Poesias de Álvaro de Campos, ed. cit., p.282-284)

ODE DE RICARDO REIS

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(Odes de Ricardo Reis, ed. cit., p.68-69.)

AUTOPSICOGRAFIA

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razaão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Poesias de Fernando Pessoa, Obras Completas de Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1951, p.237)

SONETO DE EUGÊNIO DE CASTRO

Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.

Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.

Sei que jamais hei de possuir-te, sei
Que outro, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.

Meu coração no entanto não se cansa:
Amam metade os que amam com esp’rança,
Amar sem esp’rança é o verdadeiro amor.

(CASTRO, Eugênio de. Obras Poéticas, 10 vols., Lisboa, Lúmen, Vol. I [1927],p.53)

ESTE INFERNO DE AMAR

Este Inferno de Amar

Este inferno de amar _ como eu amo! _
Quem mo pôs aqui n’alma...quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida _ e que a vida destrói _
Como é que se veio atear,
Quando _ ai quando se há de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... _foi um sonho_
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio , ai de mim! despertar?

só me lembra que um dia formoso
Eu passei ...dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? _ Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

(GARRETT, João Batista Leitão de Almeida. Folhas Caídas, introd. de José Gomes Ferreira, Lisboa, Portugália, 1955, p.91)

SONETO DE BOCAGE

Minh’alma quer lutar com meu tormento;
Contenda inútil! É por ele o Fado:
Apenas de oprimir-me está cansado
Eterna força lhe refaz o alento:

Mais vale que delire o pensamento
Te agora coa Razão debalde armado;
É menos triste, menos duro o estado
A Desesperação, que o Sofrimento:

A Desesperação soluça e chora,
A Desesperação mi ais desata,
Parte do mal nas queixas se evapora:

O Sofrimento azeda o que recata;
Prende suspiros, lágrimas devora,
Tiraniza, consome, e às vezes mata.

(BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Poesias, sel. pref. e notas de Guerreiro Murta, Lisboa, Sá da Costa, 1943,p.7)

EU SEI

Eu sei

Sexo verbal não faz meu estilo
Palavras são erros e os erros são seus
Não quero lembrar que eu erro também

Um dia pretendo tentar descobrir
Porque é mais forte quem sabe mentir
Não quero lembrar que eu minto também

Eu sei

(Renato Russo)

QUE PAÍS É ESTE

Que país é este


Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é este

No Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense
Mato Grosso, nas Geraes e no Nordeste tudo em paz
Na morte eu descanso mas o sangue anda solto
Manchando os papéis, documentos fiéis
Ao descanso do patrão

Que país é este

Terceiro mundo se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios em um leilão.

Que país é este

(Renato Russo)

LETRA DE PRENDA MINHA

Letra de Prenda Minha


Vou-me embora, vou-me embora,
prenda minha
Tenho muito que fazer
Tenho de ir para rodeio, prenda minha
No campo do bem-querer

Noite escura, noite escura, prenda minha
toda noite me atentou
Quando foi de madrugada, prenda minha
Foi-se embora e me deixou

Troncos secos deram frutos, prenda minha
Coração reverdeceu
Riu-se a própria natureza, prenda minha
No dia em que o amor nasceu

(Domínio público)

DAQUILO QUE EU SEI

Daquilo que eu sei

Daquilo que eu sei
Nem tudo me deu clareza
Nem tudo foi permitido
Nem tudo me deu certeza

Daquilo que eu sei
Nem tudo foi proibido
Nem tudo me foi possível
Nem tudo me foi concebido

Não fechei os olhos
Não tapei os ouvidos
Cheirei, toquei, provei
Ah! Eu usei todos os sentidos
Só não lavei as mãos
E é por isso que eu me sinto
Cada vez mais limpo
Cada vez mais limpo
Cada vez mais...
Limpo...

(Ivan Lins e Vitor Martins)

ESTATUTOS DO HOMEM

Estatutos do Homem

Artigo 1º: Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo 2º: Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm o direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo 3º: Fica decretado que a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo 4º: Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
§: O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo 5º: Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com o seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo 6º: Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo 7º: Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridão, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo 8º: Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar amor a quem se ama sabendo que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo 9º: Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo 10º: Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco.
Artigo 11º: Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo do que a estrela da manhã.
Artigo 12º: Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. Tudo será permitido, sobretudo brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
§: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo 13º: Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo final: Fica proibido o uso da palavra liberdade a qual será suprida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio ou como a semente do trigo, e sua morada será sempre o coração do homem.

(Tiago de Mello)

O NAVIO NEGREIRO

O Navio Negreiro

’Stamos em pleno mar
Era um sonho dantesco... o tombadilho,
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa dos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia
E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanaz!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!

São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão...

São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos
Filhos e algemas nos braços,
N'alma lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael...

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma das noites nos véus...
...Adeus! ó choça do monte!...
...Adeus! palmeiras da fonte!...
...Adeus! amores... adeus!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no seu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia demais...
Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!

(Castro Alves)

APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA

Apólogo brasileiro sem véu de alegoria

O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.
Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e-mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:
- Vá pisar no inferno!
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.

* * *

Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão, dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca, guia dele, só dava uma folga no bocejo para cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu um cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz:
- O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
- Não sei: nós estamos no escuro.
- No escuro?
- É.
Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:
- Não tem luz?
Bocejo.
- Não tem.
Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
- O vagão está no escuro?
- Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:
- Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou berrando:
- Luz! Luz! Luz!
Só a escuridão respondia.
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntavam dentro da noite:
- Que é que há?
Baiano velho respondia:
- Não tem luz!
Vozes concordavam:
- Não tem mesmo.

* * *

Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direito sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo.
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
- Ele é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém, com banda de música e discursos.
- Foguetes também
- Foguetes também.
- Be - le - za!
Mas João Virgulino observou:
- Isso custa dinheiro.
Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:
- Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
- Quilo e meio de toicinho!
Todos os passageiros, magarefes e auxiliares, imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
- Quantas reses, Zé Bento?
- Eu estou na Quarta, Zé Bento!
Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.
- Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano velho respondeu:
- É por causa das trevas!
O chefe do trem suplicava:
- Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.
- Aqui ainda tem uns três quilos de coxão-mole!
O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada As Armas Cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe, muito pálido.

* * *

Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.
Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiro. Todos se mantivera na negativa, menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:
- Qual a causa verdadeira do motim?
O homem respondeu:
- A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:
- Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes, o homem revelou:
- Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.

(Antônio de Alcântara Machado. In Antologia escolar de contos brasileiros. Rio de Janeiro. Edições de Ouro. p. 117-121.)

A TERCEIRA MARGEM DO RIO

A Terceira Margem do Rio

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

(Guimarães Rosa)

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos.

AMANHÃ

Amanhã

Amanhã, será um lindo dia, da mais louca alegria
Que se possa imaginar
Amanhã, redobrada força p'ra cima, que não cessa
Há de vingar

Amanhã, mais nenhum mistério, acima do ilusório
O astro-rei vai brilhar
Amanhã a luminosidade, alheia a qualquer vontade
Há de imperar

Amanhã está toda esperança por menor que pareça
Existe, e é p'ra vicejar
Amanhã, apesar de hoje, será a estrada que surge
P'ra se trilhar

Amanhã, mesmo que uns não queiram
será de outros que esperam
Ver o dia raiar
Amanhã, ódios aplacados,
temores abrandados, será pleno.

(Guilherme Arantes)

ALÔ ALÔ MARCIANO

Alô, Alô Marciano

Alô, alô marciano
Aqui quem fala é da Terra
Pra variar, estamos em guerra
Você não imagina a loucura
O ser humano tá na maior fissura porque
Tá cada vez mais down no high society!

Alô, alô marciano
A crise tá virando zona
Cada um por si, todo mundo na lona
E lá se foi a mordomia
Tem muito rei aí pedindo alforria porque
Tá cada vez mais down no high society!

Alô, alô marciano
A coisa tá ficando ruça
Muita patrulha, muita bagunça
O muro começou a pichar
Tem sempre um aiatolá prá atolá, Aláh!
Tá cada vez mais down no high society!


(Rita Lee/Roberto de Carvalho)

ALÉM DOS OUTDOORS

Além dos Outdoors

No ar da nossa aldeia
há rádio cinema e televisão
Mas o sangue só corre nas veias
por pura falta de opção
As aranhas não tecem suas teias
por loucura ou por paixão
Se o sangue ainda corre nas veias
é por pura falta de opção

No céu alem de nuvens
há sexo drogas e talk-shows
As coisas mudam de nome
mas continuam sendo religiões
No dia-a-dia da nossa aldeia
há infelizes infantados de informação
As coisas mudam de nome
mas continuam sendo o que sempre serão

Você sabe o que eu quero dizer
num tá escrito nos outdoors
Por mais que a gente cante
o silêncio é sempre maior
Você sabe o que eu quero dizer
num tá escrito nos outdoors
por mais que a gente grite
o silêncio é sempre maior

No ar da nossa aldeia
há mais do que poluição
Há poucos que já foram
e muitos que ainda serão
As aranhas não tecem suas teias
por loucura ou por paixão
se o sangue ainda corre nas veias
É por pura falta de opção

Você sabe o que eu quero dizer
num tá escrito nos outdoors
Por mais que a gente cante
o silêncio é sempre maior
Você sabe o que eu quero dizer
não cabe na canção
por pura falta de opção
por pura é contra o coração
o coração

Você sabe o que eu quero dizer
nunca foi dito num talk-show
por mais que a gente cante
o silêncio
o silêncio
o silêncio
o silêncio
o silêncio
o silêncio

(Engenheiros do Hawaii)

ALEGRIA ALEGRIA

Alegria Alegria

Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revistas
Me enchem de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não? Por que não

Ela pensa em casamento e
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço sem documento
Eu vou

Eu tomo uma Coca-Cola
Ela pensa em casamento
Uma canção me consola
Eu vou

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do brasil

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou

Sem lenço sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor

Eu vou... por que não? Por que não?

(Caetano Veloso)

ALAGADOS

Alagados

Todo dia,
O sol da manhã vem lhes desafiar
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia

E a cidade,
Que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados
Da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

Alagados Trenchtown
Favela da maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de TV

A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em que
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em que

(Herbert Vianna)

ADMIRÁVEL GADO NOVO

Admirável Gado Novo

Vocês que fazem parte dessa massa
que passa nos projetos do futuro
é duro tanto ter que caminhar
e dar muito mais que receber.
E ter que demonstrar sua coragem
à margem do que possa parecer
e ver que toda essa engrenagem
já sente a ferrugem te comer.

| Eh!... ô... ô... vida de gado
| Povo marcado eh!... povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável
a vigilância cuida do normal
os automóveis ouvem a notícia
os homens a publicam no jornal
e correm através da madrugada
a única velhice que chegou
demoram-se na beira da estrada
e passam a contar o que sobrou.

|

O povo foge da ignorância
apesar de viver tão perto dela
e sonham com melhores tempos idos
contemplam essa vida numa cela
esperam nova possibilidade
de verem esse mundo se acabar
a Arca de Noé, o dirigível
não voam nem se pode flutuar.
Não voam nem se pode flutuar...

(Zé Ramalho)

A DOIS PASSOS DO PARAÍSO

A Dois Passos do Paraíso

Longe de casa
A mais de uma semana
Milhas e milhas distante
Do meu amor
Será que ela está me esperando
Eu fico aqui sonhando
Voando alto
Ou perto do céu

Eu saio de noite
Andando sozinho
Eu vou entrando em qualquer barra
Eu faço meu caminho
O rádio toca uma canção
Que me faz lembrar você
Eu fico louco de emoção
E já não sei o que vou fazer

Estou a dois passos do paraíso
Não sei se vou voltar
Estou a dois passos do paraíso
Talvez eu fique, eu fique por lá
Estou a dois passos do paraíso
Não sei por que eu fui dizer bye bye
Bye bye baby bye bye (bis)

A Rádio Atividade leva até vocês
Mais um programa da séria série
"Dedique uma canção a quem você ama".
Eu tenho aqui em minhas mãos uma carta,
Uma carta de uma ouvinte que nos escreve
E assina com o singelo pseudônimo de
"Mariposa apaixonada de Guadalupe"
Ela nos conta que no dia que seria
O dia do dia mais feliz de sua vida
Arlindo Orlando, seu noivo
Um caminhoneiro conhecido de pequena
E pacata cidade de Miracema do Norte,
Fugiu, desapareceu, escafedeu-se.
Oh! Arlindo Orlando
Volte onde quer que você se encontre
Volte para o seio de sua amada.
Ela espera ver aquele caminhão voltando
De faróis baixos, e pára-choque duro.
Agora uma canção
Canta pra mim,
Eu não quero ver você triste assim.

Bye bye baby bye bye
Estou a dois passos do paraíso
E meu amor vou te buscar
Estou a dois passos do paraíso
E nunca mais vou te deixar
Estou a dois passos do paraíso
Não sei por que eu fui dizer bye bye

(Evandro Mesquita/Ricardo Barreto)

A CARTOMANTE

A Cartomante

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído. Com esta publicação homenageamos Machado de Assis que, no dia 21 deste, estaria completando seu 172° aniversário.

(Machado de Assis)

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ALICE

ALICE

Alice, embebida de pureza,
...há poucas horas, chegara ao planeta,
ainda estava imune à maldade,
quando as notícias velozes
rasgaram-lhe as têmporas.

Lágrimas verdes vertendo das retinas,
ponta de dor aguda a lhe fisgar o peito,
grito de clave de sol, preso à garganta,
ela então, vê a santa desnuda
sob a luz fria do cotidiano,...
momento em que o belo pintou-se de breu
(sabor amargo de inocência trincada).

Cansada, recolhe-se ao quarto,
a proteger-se dos cristais e plasmas.
Após sangrar lembranças, cerra as pálpebras,
chora e soluça, outra vez, sozinha.
Por fim, Alice adormeceu!
Em seus sonhos ainda existem flores,
a água e a verdade parecem cristalinas
e até o coração do homem é bom.

Acanhado, procurei algo
que a fizesse sentir-se melhor
quando acordasse;
tentei criar um origami, mas já era tarde,...
...eu só tinha em mãos, a realidade.

(André Soares)

ESCOLA DE BEM-TE-VIS

Escola de Bem-te-vis

Muita gente já não acredita que existam pássaros, a não ser em gravuras ou empalhados nos museus _ o que é perfeitamente natural, dado o novo aspecto da terra, que, em lugar de árvores, produz com mais abundância blocos de cimento armado. Mas ainda há pássaros, sim. Existem tantos, em redor da minha casa, que até agora não tive (nem creio que venha a ter) tempo de saber seus nomes, conhecer suas cores, entender sua linguagem. Por que evidentemente os pássaros falam. Há muitos, muitos anos, no meu primeiro livro de inglês se lia: “Dizem que o sultão Mamude entendia a linguagem dos pássaros...”

Quando ouço um gorjeio nestas mangueiras e ciprestes, logo penso no sultão e nessa linguagem que ele entendia. Fico atenta, mas não consigo traduzir nada. No entanto, bem sei que os pássaros estão conversando.

O papagaio e a arara, esses aprendem o que lhes ensinam, e falam como doutores. E há o bem-te-vi, que fala português de nascença, mas infelizmente só diz o seu próprio nome, decerto sem saber que assim se chama.

Anos e anos a fio, os bem-te-vis do meu bairro nascem, crescem, brigam, falam... _ depois deixam de ser ouvidos: não sei se caem nas panelas dos sibaritas, se arranjam emprego, se viajam, se tiram férias, se fazem turismo. Não sei.

Mas, enquanto andam por aqui, são pacientemente instruídos por seus pais ou professores, e parece que, tão cedo começam a voar, já vão para as aulas, ao contrário de muitas crianças que antes de irem para as aulas já estão voando.

Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas: a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos _ ah! principalmente os gatos... Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só: “Bem-te-vi! Bem-te-vi!” , que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas.

Antigamente era assim. Agora, porém, as coisas têm mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: “Bem-te-vi!” _ o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: “Te-vi !” Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. “Bem-te-vi! Bem-te-vi!”, tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de “Te-vi! Te-vi! Te-vi!” ,que deixou o próprio eco muito desconfiado.


Esta revolução durou algum tempo. A passarinhada vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos. “Bem-te-vi!”, diziam estes, severos e puristas, tentando chamá-los à razão. “Te-vi! Te-vi!”, gritavam os outros, galhofeiros, revoltosos, endoidecidos.

Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: “Bem-te-vi! Bem-te-vi!” _ e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviam a abreviatura dos pais: “Te-vi! Te-vi!” Mas acharam muito comprido ainda. (Que trambolho, a família!) E passaram a responder, por muito favor, “Vi! Vi!” Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato...

(Cecília Meirelles)

IDEOLOGIA

Ideologia

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Freqüente agora as festas do “Grand Monde”
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu Sex and drugs não tem nenhum rock’n roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais Ter que saber quem sou eu
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Agora assiste a tudo em cima do muro
Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver.

(Cazuza)

Fio de Vida

Fio de vida


Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.

(Thiago de Mello)

EU, ETIQUETA

EU, ETIQUETA


Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório,
Um nome ... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso , abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentite e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anuncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste a sandália de uma essência
tão viva, independente,
que na moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto,
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de não ser eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

(Carlos Drummond de Andrade)